A REGRA JÁ ESTÁ RAZOAVELMENTE CLARA

O uso de recursos para assistir a arbitragem, como por exemplo o relógio inteligente (tecnologia Goal-line – GLT, que vibra quando a bola passa totalmente a linha do gol) e o árbitro de vídeo (Video Assistant Referree – VAR) protagonizaram, e ainda protagonizarão, momentos durante a Copa do Mundo de 2018 (Rússia).

Quanto ao relógio inteligente, que aponta a efetivação do gol, notou-se que em algumas oportunidades o árbitro apontou para o pulso com o intuito de mostrar aos jogadores que a marcação da pontuação está correta. E quando isso ocorria não existiram posteriores questionamentos da utilização (ou não-utilização) como do árbitro de vídeo (VAR).

No jogo de estreia da Seleção Brasileira houve questionamento da motivação de não utilizar o recurso tecnológico de imagem em duas (2) oportunidades: o gol de empate, em que teria ocorrido falta do atacante, e de uma penalidade máxima não marcada, supostamente sofrida pelo atacante Gabriel Jesus. Além disso, para acrescentar à polêmica, em outra partida, um técnico foi repreendido por fazer o gesto da tela. No tocante à partida de número 11 (Brasil x Suíça), o assunto chegou ao extremo com o Ofício da Confederação Brasileira de Futebol dirigido ao Presidente da FIFA pedindo esclarecimento sobre a forma de utilização deste recurso. No referido documento consta (original em inglês, tradução livre abaixo)[1]:

Estas duas (2) ações constituem, na opinião da CBF, claros erros de arbitragem, os quais deveriam ter tido decisões reexamináveis por meio da análise do VAR, em concordância com o Protocolo VAR. Por outro lado, a CBF está ciente de que, conforme protocolo estabelecido pela IFAB e FIFA, é do árbitro a palavra final se a jogada será ou não revisada e se a decisão revista será mantida ou não. Igualmente, a CBF está ciente de que o VAR deve informar ao árbitro sobre ações que potencialmente podem ser revistas, fornecendo a ele todos os fatos e recomendações cabíveis para a decisão a ser tomada. Considerando o exposto acima, e também à luz do fato de que o VAR foi recentemente introduzido a nível internacional, e é normal que certos aclaramentos sejam fornecidos nos estágios iniciais da implementação de tal nova tecnologia, a CBF respeitosamente gostaria de ser informada se:

I – O Sr. Valeri[2], ou qualquer um no VAR, sugere ao árbitro a revisão de algumas das jogadas e como?       

II – O árbitro, que tem o poder para tanto, pediu ao VAR para analisar as jogadas?             

III – Em qualquer dos casos, qual foi a comunicação entre os dois?

Antes de abordar os questionamentos da entidade nacional gestora do futebol, cabe analisar o motivo pelo qual a tecnologia GLT não é tão combatida como o VAR.  Primeiro, a tecnologia da linha de gol entrou em funcionamento no Copa do Mundo de Clubes de 2012. Já quanto ao mundial de seleções nacionais, a tecnologia fez sua estreia em 2014 (Copa do Mundo no Brasil). Este histórico já mostra a internalização fática pelo esporte, tanto que ao se vislumbrar o Regulamento da competição de 2018[3] apenas consta (original em inglês, tradução livre abaixo):

A tecnologia Goal-line pode ser utilizada com o intuito de verificar se um gol foi pontuado para alicerçar a decisão do árbitro.

A falta de uma redação detalhada mostra que a textura aberta da regra do torneio é completada pelo entendimento de todos do que seria esta tecnologia, como ela funciona e como ela opera na partida.

Já quanto ao árbitro de vídeo, o Regulamento não fala explicitamente. Todavia, há disposições que mostram as diretrizes para resolver este ponto em aberto (original em inglês, tradução livre abaixo):

9.Leis do Jogo

1.Todas as partidas serão jogadas de acordo com as Leis do Jogo em vigência no tempo da competição e estabelecidas pela International Football Association Board. No caso de alguma discrepância na interpretação das Leis do Jogo, a versão em inglês será predominante.

2.Cada partida deve durar 90 minutos, compreendendo dois períodos de 45 minutos, com um intervalo de 15 minutos

3.Se, conforme as provisões deste Regulamento, tempo extra for jogado como resultado de um empate no final do tempo normal de jogo, ele sempre consistirá de dois períodos de 15 minutos, com um intervalo de cinco minutos no fim de cada tempo normal de jogo, mas não entre dois períodos de tempo extra.

4. Se o placar ainda estiver parelho depois do tempo extra, chutes em penalidade serão cobrados para determinar o vencedor de acordo com o procedimento descrito nas Leis do Jogo.

(…)

54.Casos não abordados e força maior

Casos não abordados neste Regulamento ou casos de força maior serão decididos pelo Comitê Organizador da FIFA.

Pelo que se nota, há uma sistemática de subsidiariedade, em que se não existir no Regulamento do evento de 2018 se deve buscar as Leis do Jogo da IFAB (disponível em: http://www.theifab.com/laws). Caso as Leis do Jogo não resolvam a questão, a palavra final será dada pelo Comitê Organizador.

O vídeo consta em item específico das regras do jogo divulgadas pela IFAB. Ali consta (original em inglês, tradução livre abaixo):

DECISÕES/INCIDENTES ALTERADORES DE RESULTADO REVISÁVEIS

O árbitro pode receber assistência do VAR apenas em relação a quatro categorias de decisões/incidentes capazes de alterar a partida[4]. Em todas estas situações, o VAR somente será usado depois do árbitro tomar uma (primeira/original) decisão (incluso permitindo a sequência do jogo), ou se for um incidente sério for perdido/não visto pelos oficiais da partida. A decisão original do árbitro não será alterada a menos que seja um ‘erro claro e óbvio’ (nisso incluída qualquer decisão tomada pelo árbitro com base nas informações de outro oficial da partida, p. e. bandeirinha).

(…)

PROCEDIMENTO

(…)

Revisão

O árbitro pode[5] iniciar a ‘revisão’ sobre um potencial ‘erro claro e óbvio’ ou ‘sério incidente perdido’ quando:

– o VAR (ou outro oficial da partida) recomendar a ‘revisão’

– o árbitro suspeita que algo sério foi ‘perdido’

Note-se a palavra: pode (can, no original em inglês). Isso implica que a discricionariedade, o poder de decisão arrazoado, é único e exclusivo do árbitro. Portanto, o que a CBF deseja saber é a conversa entre os árbitros, ou seja, ela só pergunta “o que foi dito por um, por outro, ou pelos dois?” Em nada mudará algo que já passou.

As regras para a utilização estão escritas em previsão específica e são direcionadas para a equipe de arbitragem, não cabendo às equipes demandar isso. Observação: o árbitro pode entender que os participantes (jogadores ou equipe técnica nacional) demandarem a consulta ao VAR (inclusive fazendo o gesto da TV) pode ser entendido como má conduta (misconduct) e um ato sujeito a ação disciplinar (leia-se, cartão).

Portanto, entende-se que a conduta da CBF, em remeter um Ofício à FIFA solicitando esclarecimento, estaria equivocada. Ainda mais ao se considerar que o comentarista de arbitragem de um canal nacional obteve acesso aos áudios sem a burocracia despendida e que o acesso a tal informação em nada alteraria o placar da partida e nem a forma em que as decisões são tomadas no decorrer das disputas, afinal, a palavra do árbitro de campo é final.

Se a CBF realmente queria marcar uma posição ante o que entende como injustiça, deveria ter se valido do Protesto (artigo 15, procedimento detalhado no item 2 se em momento posterior ou pelo capitão da equipe nos moldes do item 5), como disposto no Regulamento do torneio (página 21), bem como responsabilizado diretamente o árbitro pelo resultado final. Citando o sábio chinês: “Os que ignoram as condições geográficas – montanhas e florestas – desfiladeiros perigosos, pântanos e lamaçais – não podem conduzir a marcha de um exército”. Deseja-se muita sorte ao coletivo nacional nos jogos que virão.

[1] https://conteudo.cbf.com.br/cdn/201806/20180619103225_132.pdf

[2] Árbitro encarregado da revisão das imagens.

[3]https://www.uefa.com/MultimediaFiles/Download/Regulations/uefaorg/Regulations/01/87/54/21/1875421_DOWNLOAD.pdf

[4] Gol/não-gol; pênalti/não-penalti; cartão vermelho direto; e identidade equivocada (ao atribuir cartão).

[5] Versão em inglês utiliza o verbo can para designar uma potencialidade sob a sua faculdade.

  • Artigo elaborado por João Antonio Ferreira Gusi, advogado especialista em Direito Tributário Empresarial e Processo Tributário e revisado por André Luis Tisi Ribeiro, advogado especialista em Direito Desportivo.
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